quarta-feira, 13 de julho de 2011

O que queremos das mulheres?

Por Milly Lacombe

A seleção feminina de futebol não deveria existir. Fosse pela vontade da CBF, da grande mídia ou dos patrocinadores, não estaria aí. A seleção feminina existe porque é feita de guerreiras, de mulheres que amam jogar bola e que não se importam em superar humilhações, preconceitos e desprezo. Fazem isso com dribles, fintas, toque de bola, gols espetaculares e muito suor. O mundo aprecia. Nós, nem tanto.

Mas, mesmo com a vergonhosa falta de apoio, elas continuam encantando. Lotam estádios – fora do Brasil, claro – e protagonizam lances de tirar o fôlego. Ver Marta jogar é chegar um pouco mais perto de Deus. Mas quem se importa? Não a CBF, que deixou de mandar para a Copa do Mundo da Alemanha um cozinheiro para alimentar essas meninas. Eram elas que tinham que fazer a própria comida – segundo reportagem do caderno de esportes da Folha de S.Paulo do dia 12 de julho. A masculina sub-17 tem cozinheiro, embora não resultados.

Ainda assim, exigimos que elas vençam tudo, mais ou menos como se exige do sujeito que vai pedir empréstimo em banco uma prova de que ele não precisa da dele – imóveis, salários altos, terrenos.

Nunca demos nada para essas moças, mas a vitória é mandatória. “Acostumadas a perder” foi uma das manchetes do dia seguinte à derrota para os Estados Unidos. “Acostumadas a sofrer” teria sido uma chamada mais apropriada.

A maioria não tem time, não tem salário, não tem renda. Ainda assim, insiste em jogar bola com a camisa amarela. Quando elas vencem, acreditam, por ingenuidade talvez, que receberão um prêmio em dinheiro, que ou não é pago ou demora anos para chegar.

Embora nunca tenhamos dado nada a elas a não ser preconceito em doses fartas, já foram campeãs do mundo e da América. Os títulos não alteraram o status com a CBF, com a Globo, com empresários, com quem quer se seja. Mas o planeta viu, e aplaudiu.

Enquanto Marta aplica lençóis sublimes e poéticos que a deixam na cara do gol, a gente vê Robinho enrolar com a bola de um lado para o outro, vê Daniel Alves gastar mais tempo com o penteado do que com a bola nos pés, vê Neymar levantar a gola da camisa e procurar pelas câmeras logo depois de acertar um passe lateral.

Para cada jogador, dez membros do staff da CBF: roupeiros, seguranças, assessores de imprensa, fotógrafos, cinegrafistas. O clique é bem-vindo, estão todos devidamente engomados para recebê-lo. A arte hoje está no acessório. A pátria de chuteiras é agora a CBF de chuteiras, até Nelson concordaria. Como torcer por esse estado de coisas?

Há como. Não vem com o coração, mas alguns acreditam que é torcer mesmo assim.

As câmeras e os analistas, por exemplo, gastam incontáveis minutos esmiuçando Mano. “Ah, vejam como suas sobrancelhas indicam a tensão que viveu naquele momento”. “Olhem como Mano comemorou o gol, que felicidade”. “Percebam como Mano comanda o time do banco, os gestos claros e diretos.” “Notem como coça o nariz com elegância o Mano”. Em cima dele, dez câmeras capazes de decodificar para o show do intervalo cada mínima atitude, cada bufada, cada piscada. Os sublimes lençóis de Marta quase nem VT tiveram.

Outra dúzia de câmeras está sobre Neymar. A bola não importa mais, importa apenas ver a movimentação do novo messias. Deu dois chutes a gol, mas como corre, como se movimenta, como pede a bola - como cai. Tudo ali, detalhadamente registrado por um arsenal midiático. Formiga, cinco mundiais nas costas, sai de campo sem registro para a posteridade.

A seleção feminina vai continuar a perder. Vai perder para mulheres que treinam mais, correm mais, confiam mais, recebem mais (moral, dinheiro, aplausos, status). Vai perder para o preconceito, para o pouco caso, para o status-quo. Mas serão derrotas memoráveis e comoventes, sobre as quais choraremos e nos comoveremos - e já é muito mais do que a seleção masculina tem oferecido há muitos anos. Por eles, quem hoje se comove?

A seleção feminina não sabe ganhar porque a essas moças sempre foi ensinado que não poderiam sequer jogar – futebol é coisa de homem, mulher que joga bola é sapatão, viva o escrete masculino nacional. Tudo é moral, e nossas meninas não receberam isso.

Quando a seleção feminina joga, o resultado não deveria importar. O que entra com elas é honra, nobreza, poesia e pureza. Bastaria para que aplaudíssemos sempre. Bastaria para que recebessem a melhor manchete em qualquer circunstância, mesmo depois da derrota que não deveria ter acontecido. O que elas arrastam para dentro do campo são nossos valores mais caros e raros.

Apenas nos resta continuar a ver os homens, sempre em horário nobre, tocar a bola de um lado para o outro sem a preocupação de entreter ou encantar. Estão ali para seduzir empresários, não o povo.

Mas chega porque hoje tem mais futebol: Robinho e Cia contra o duríssimo Equador. E os olhos da nação estarão sobre eles. Jogão.